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  • Foto do escritorPatrícia e Rafaela

COLUNA ROTEIRO DESMEMBRADO #1: Mãe!

Atualizado: 15 de mai. de 2020

O polêmico filme de 2017, do diretor Darren Aronofsky (Fonte da vida, O lutador e Cisne Negro), estrelado por Jennifer Lawrence, Javier Bardem, Michelle Pfeiffer e Ed Harris, pode ser categorizado como terror, mas os sentimentos que este invoca são muito mais complexos que isto.

Um filme construído em metáforas, das quais pode-se extrair diversos significados. Fica a dúvida se é melhor assistir sem saber nada ou primeiro entender a história base, vendo spoilers para assim apreciar o filme.


Confesso que amei a experiência de não entender nada, e a de assistir após ter escavado a internet atrás de explicações e por isso acredito que este é um filme para se assistir duas vezes, antes e depois. 


A partir daqui, aconselho que quem não assistiu e pretende ter a experiencia de assistir sem conhecer a história, não continue a leitura. O nosso objetivo será apresentar a explicação da metáfora, após tentar extrair alguns significados possíveis para ela e ao final expor comentários do diretor.


A metáfora


Talvez devêssemos começar o filme pelos créditos, pois só ali é anunciado quem são de fato os personagens. A narrativa tem como base para a construção da história a bíblia. Assim, o marido creditado com Ele, representaria Deus, enquanto a esposa seria a Mãe natureza. O primeiro homem que chega na casa seria Adão, sua esposa Eva e seus filhos, Caim e Abel.


Porém, a apresentação de algumas histórias bíblicas, são construídas a partir do foco dos sentimentos da terra/mãe natureza (manifestação física e consciente), com algum cinismo, muito realista, na construção de Deus e dos seres humanos.


O primeiro aspecto é que se trata de uma história cíclica ou de muitos recomeços, nesse sentido, após assistir o final do filme, as cenas inicias se tornam mais compreensíveis, pois é do caos, do fim, do último apocalipse que surge a criação. Assim podemos entender ambos, início e final, como apocalipse/ criação.


E é interessante que após a criação vemos a mãe natureza, se ambientando, se reconhecendo naquele ambiente e buscando pela única coisa que conhece, Deus. Deus por sua vez se mostra extremamente egocêntrico, e preocupado com seu bloqueio criativo.


Observe que há certo, conforto e tranquilidade na rotina do casal no local até a chegada do primeiro intruso.  E se podemos chamá-los de intrusos é porque o filme é inteiramente narrado a partir da perspectiva da mãe, a câmera segue seus passos durante toda a projeção.

Continuando a narrativa, chega Adão e Deus fica muito animado apesar dos receios da Mãe, no dia seguinte chega Eva que apresenta um comportamento muito mais provocante, curioso e atrevido.


Eva fica curiosa com o escritório de Deus e apesar da Mãe dizer que se trata de um ambiente proibido, Eva entra e quebra o cristal (coração da última mãe natureza, que representa o amor dela por Ele e que deu início a esta criação). Deus expulsa o casal do escritório e veda o local para que esses não entrem mais, representando a expulsão do paraíso.


Na sequência, chegam os filhos do casal, disputando e brigando por causa do testamento que o pai havia deixado, é brutal a cena do fratricídio que apenas a mãe assiste.


Com o falecimento de Abel, Deus convida os primeiros humanos para velar em sua casa, assim, novos estranhos adentram a casa da Mãe, sem qualquer respeito pelo local. Eles fumam, quebram as coisas, se sentem em casa e a Mãe tenta desesperadamente proteger seu ambiente.


É interessante as conversas da Mãe com as pessoas. Um homem pintando uma parede lhe conta que Ele foi tão generoso, que seria o mínimo que poderia fazer. Outro tenta assedia-la, dizendo que ele poderia lhe oferecer muitas coisas e após ser recusado a xinga e menospreza. Por fim, um casal insiste em sentar sobre uma pia não chumbada e em meio aos protestos da mãe, começam a pular, quebrando a pia e estourando um cano. Essa cena representa o dilúvio, nesse momento a Mãe expulsa os intrusos de sua casa, repetindo que eles não escutam.

Após, o casal tem uma noite juntos e ela engravida de um bebê que seria Jesus, com a chegada do filho, Ele se sente inspirado e volta a escrever. É curioso que no momento em que o filho se mexe, ele termina seu novo livro (novo testamento).


E com o novo testamento, veio a popularização do cristianismo, representado no filme pela chegada de novas pessoas, muitas pessoas. E a destruição começa, pelos mais diversos motivos: porque querem deixar uma marca de que estiveram ali; porque querem algo dele; porque acham que podem usar e abusar sem consequências; pela repressão policial; pelo furto e de forma mais intensa pela guerra. Simbolizando o que fazemos com a terra.


No meio do caos Ele acha a mãe em trabalho de parto e após o nascimento do filho, tudo que ela quer é protege-lo, porém, Ele não quer que os intrusos vão embora. Ele aguarda pacientemente, até que ela adormeça e então, entrega seu filho aos humanos. O que segue, é uma das cenas mais angustiantes e chocantes que já vi no cinema, o filho é morto e consumido (canibalismo) pelos devotos dele, simbolizando a morte de Cristo e a comunhão.  Deus perdoa a todos, como descreve o novo testamento, porém, a mãe chega ao seu limite colocando fogo na casa e gerando um novo apocalipse. O filme termina com uma nova criação.


Alguns significados


Como toda história metafórica, “Mãe!” abre margem para diversas compreensões pelo espectador. Sem pretensão de exaurir as possibilidades infinitas de apreensão de sentido, pretendo abordar algumas, que a partir de minhas experiências concretas de vida, me chamaram atenção.

A primeira é a violência doméstica contra a mulher. E já nas cenas iniciais, o controle dele sobre ela está caracterizado pela forma como no momento em que ela chega à varanda, por sinal, única cena da personagem fora da casa, ele aparece para conduzi-la para dentro. Esse controle está expresso em todo o longa, ao ponto dela anular sua própria personalidade e desejos e viver em função da vida dele.


Ao mesmo tempo, as decisões são tomadas inteiramente por ele, que quando confrontado inverte a situação acusando ela de alguma coisa, para por meio da culpa exercer novo controle. O mesmo pode ser dito sobre o seu carisma e manipulação, que em última instância, serve sempre ao seu próprio egocentrismo e narcisismo.


A fala dele ao final é muito interessante, quando questionado sobre o porque ela não foi o suficiente, ele diz que ela jamais seria, pois nada poderia ser suficiente se não ele não poderia mais criar, para na sequência complementar dizendo que ele amava como ela amava ele.


Quem controla não ama a pessoa ao seu lado, mas sim, ama tanto a si mesmo que se agrada na devoção do outro, mesmo que desenvolvida pela alienação criada por ele. E é sintomático que ao final do filme, a mulher que acorda na cama vazia possui outra cara, pois, é isso que acontece, após o fim do relacionamento abusivo, homens controladores partem para mais uma relação de abuso, em um ciclo de violência.

Outra relação interessante sobre a apresentação do patriarcado no filme está na construção de Eva e da mãe. Eva causa repulsa por agir, exatamente como os homens, com personalidade, liberdade para demonstrar seus desejos e ambições e com a sexualidade exposta e vivida, enquanto a mãe se apresenta como racional e “boa moça” por estar constantemente preocupada, submissa e ingênua.


Outro tema, é a destruição da terra que nossos hábitos de consumo, guerra e falta de consciência geral tem ocasionado, este talvez seja mais evidente. 


Ainda, podemos extrair da obra uma metáfora sobre o processo de criação do artista, sendo a mãe a musa e a casa o processo em si, ela constrói a casa que se esvai e se destrói para que o artista crie sua arte. O filho representa o símbolo máximo da nova criação sendo avidamente consumido pelo público que deseja novas criações, o que torna necessário se desfazer de sua última obra para abrir espaço para o novo processo criativo em um ciclo sem fim.


Comentários do diretor


O filme gerou muitas polêmicas e em resposta o diretor relatou em entrevista:

“Eu queria fazer um filme sobre a Mãe Terra e como nós a tratamos. Da maneira que eu vejo, nós a tratamos de uma forma extremamente desrespeitosa. Nós a saqueamos, estupramos, chamamos-a de lixo. Por isso Jennifer [Lawrence] interpretou o papel daquele jeito” 

Sobre a metáfora bíblica disse que;

“Eu olhei a Bíblia e como o Velho Testamento é escrito. Quando você pensa naquele Deus, se você não reza para ele, ele te mata. Que tipo de personagem faz isso? Para mim, era tudo sobre interpretar a emoção humana.”


Por fim, o único mistério que permanece no filme é o liquido amarelo ingerido pela Mãe, há diversas teorias feitas pelos fãs, porém, o diretor falou rindo em entrevista coletiva em São Pulo que: “Vocês podem me perguntar qualquer coisa. Eu contarei tudo. Mas isso eu levarei comigo para o túmulo”.


E é isso, certamente "Mãe!" É um filme desagradável, traumático e angustiante mas ao mesmo tempo instigante, cativante e marcante. Uma verdadeira obra prima que constrói aquilo que mais admiro na arte, a capacidade de nos fazer sentir e refletir sobre a nossa própria existência.


Abraços,

Rafaela L.

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